Treinamento Concorrente e o Fenômeno de Interferência

mecanismos do efeito de interferência

Chamamos de treinamento concorrente (concurrent training – CT), quando no mesmo programa de periodização, incluímos tanto exercícios de força (treinamento resistido – RT) quanto exercícios aeróbios (treinamento de endurance – ET) em uma mesma sessão ou em sessões diferentes de treino.

O treinamento simultâneo de força e endurance é algo normal e fundamental no processo de preparação de muitos atletas competitivos em esportes individuais e coletivos. Este, também é importante para manter uma qualidade de vida na população em geral.

Em 1980, o Dr. Robert C. Hickson mostrou que a combinação do treinamento de força a um programa predominantemente aeróbico poderia prejudicar as adaptações e os ganhos nos níveis de força, principalmente de membros inferiores, quando comparado com um programa de treinamento somente de força.

Óbvio que, se focar apenas no treinamento de endurance, sem complementar com um treinamento de força, os níveis de força serão menores ainda.
A esse efeito, Hickson introduziu o conceito de “fenômeno de interferência”.

No entanto, o efeito de interferência apresentou inconsistências, provavelmente devido às complexas interações entre variáveis ​​de treinamento e questões metodológicas. Posteriormente, Hickson e colegas (1988) relataram que a incorporação de um protocolo de treinamento de força ao programa de treinamento de endurance, pode representar um método vantajoso para melhorar a economia de movimento e também melhorias na resistência aeróbia.

Embora pareça ser contraintuitivo, pois a hipertrofia muscular causada por um treinamento de força causa redução da densidade e distribuição mitocondrial nas fibras musculares, o treinamento concorrente em um mesociclo (isto é, um bloco de treinamento específico, geralmente durando cerca de 3-6 semanas), não tem apresentado efeito prejudicial no VO2máx comparado com treinamento aeróbio apenas.

Além disso, observamos os maiores efeitos quando o treinamento resistido tem o foco no desenvolvimento de força máxima, com uma frequência semanal de duas sessões de treinos e um mesociclo de pelo menos 24 sessões. Entretanto, após mesociclos de CT, é comum observar um efeito menor na potência máxima em comparação com a força máxima. O que pode estar relacionado ao fenômeno de interferência.

No entanto, treinadores e atletas precisam estar cientes de como essas formas de treinamento podem interagir entre si e/ou interferir nas adaptações desejadas.

Potenciais mecanismos e causa do Fenômeno de Interferência

Dois pontos são claros na literatura atual quanto ao treinamento concorrente:

  1. os efeitos de inferência são multifatoriais e,
  2. existe uma relação dose-resposta entre o volume do treinamento de endurance (ou seja, frequência e duração) e seus potenciais efeitos negativos nos resultados do treinamento de força.

Para explicar esse fenômeno de interferência, teorias chamadas de hipótese aguda e hipótese crônica foram sugeridas (Leveritt e colaboradores, 1999):

A hipótese aguda, referre ao efeito residual induzido pelo treinamento aeróbio, levando a uma diminuição na habilidade de desenvolver tensão durante o treinamento de força. De acordo com essa teoria, a tensão gerada pela musculatura que está realizando trabalho durante o treinamento de força não seria suficiente para maximizar o desenvolvimento da força. Por outro lado, a realização do treinamento de força imediatamente antes do treinamento aeróbio, pode alterar o desempenho deste devido à fadiga neuromuscular.

A hipótese crônica estabelece que a interferência é devida as diferentes adaptações fisiológicas induzidas pelas diferentes modalidades (ativação muscular, tipo de fibra muscular, hipertrofia, depleção dos estoques de glicogênio). E ainda, que o sequenciamento do treinamento de endurance pode resultar em uma fadiga aguda (overraching) ou crônica (overtraining) acumulada, devido ao alto volume/intensidade ou a alta frequência de treinos.

A nível molecular, pensava-se originalmente que a ativação da adenosina monofosfato quinase (AMPK) pelo treinamento aeróbio poderia inibir o alvo mamífero da rapamicina (mTOR), que é ativado pelo treinamento de força. Consequentemente, essa cascata molecular reduziria a síntese proteica tipicamente associada ao treinamento de força. No entanto, esse potencial mecanismo foi descartado. Essa cascata tão divergente (AT:AMPK e RT:mTOR) parece muito simplista e a ativação da AMPK foi relatada como tendo efeitos mínimos sobre mTOR em humanos (Berryman, Mujika e Bosquet, 2019).

Complicado não? Pois é, por isso muitas questões continuam em debate ainda e algumas teorias já caíram por terra. Essa é a função da ciência e a importância de estarmos continuamente nos atualizando.

Maiores efeitos negativos em atletas bem treinados

De modo geral, o efeito negativo do treinamento concorrente se manifesta principalmente em indivíduos treinados. Uma possível explicação é que os indivíduos treinados têm menos potencial para adaptações, necessitando de um treinamento mais específico para obter melhorias de desempenho. Outra possível explicação recaí novamente sofre as hipóteses aguda e crônica.

Segundo Lepers e colaboradores (2000), 2 h de ciclismo a 65% da potência aeróbica máxima pode reduzir o pico de torque muscular em 14% em ciclistas bem treinados. Essa redução foi atribuída a um declínio na entrada neural para o músculo e mecanismos periféricos. O que a literatura tem nos mostrado também, é que o maior efeito negativo ocorre quando o treinamento de força e aeróbio é realizado dentro da mesma sessão de treinamento (< 20 min de intervalo), porém, esse efeito negativo é muito pequeno quando realizado em diferentes sessões (> 2 h de intervalo).

Treinamento Concorrente e HIIT

Ao utilizarmos HIIT longos para o treinamento aeróbio e treinamento de força com mais de 10 repetições máximas, observamos que os ganhos na força e massa muscular são reduzidos. Isto ocorre devido às adaptações induzidas pelo treinamento antagônico (David Docherty e Ben Sporer).

As adaptações relacionadas ao desempenho anaeróbio, como ganhos na força e massa muscular, são maiores em treinos de sprint repetidos (RST) e treinos intervalados de sprint (SIT) se compararmos com protocolos de HIIT longos e curtos.

Interessantemente, alguns estudos tem sugerido que o CT quando realizado utilizando RST ou SIT não prejudicam a força muscular nem os ganhos de massa muscular em comparação com o treinamento de força solo.

RST e SIT possuem alta demanda glicolítica, além disso, os sprints máximos ou submáximos característicos destes protocolos aumentam a ativação muscular e a produção de força. Fatores estes associados ao aumento de força muscular e característicos de um treinamento resistido com mais de 10 repetições máximas.

Podemos verificar se o efeito de interferência está ocorrendo, mensurando a potência muscular através da altura do salto contra movimento (CMJ) ou squat jump. O CT com HIIT longos e curtos apresentam menores melhorias no salto comparados ao protocolo CT com RST ou SIT. Caso seja verificado um decréscimo na altura do salto, este é um forte sinal da ocorrência do efeito de interferência.

Outro detalhe que devemos pontuar é que a grande maioria dos estudos utilizam protocolos com o treinamento de força tradicional. Assim, não temos dados suficientes para saber como o efeito de interferência age utilizando protocolos de treinamento de força orientados a potência, ou ainda, utilizando outros protocolos como o treinamento baseado em velocidade (VBT).

Além disso, se realizar uma sessão de HIIT longo ou curto no mesmo dia do treino de força, importante deixar um intervalo de descanso adequado entre eles (> 6 h). Este tempo diminuí a probabilidade da ocorrência do efeito de interferência na força muscular.

Recomendações para otimizar os efeitos do treinamento concorrente no desempenho

O treinamento concorrente é um campo complexo com vários outros fatores contribuintes, como o tipo e a intensidade do exercício, grupos musculares treinados (parte superior versus inferior) e características do sujeito (atletas de elite versus sedentários, jovens versus idosos), além de variações interindividuais.

Mas de modo geral, se o principal objetivo dos treinamentos é a performance neuromuscular:

  • Tanto a duração, quanto a frequência e a proximidade temporal entre o treino aeróbio e o treino de força influenciam negativamente na performance neuromuscular;
  • Protocolos de até 6 semanas podem não apresentar o efeito de interferência;
  • O treino aeróbio deveria ser realizado pelo menos 8 horas antes do treino de força, se o mesmo grupamento muscular está envolvido nas duas modalidades e, se o objetivo é maximizar o número de repetições executadas durante o treino de força;
  • Pensando no desenvolvimento de força máxima de membros inferiores, realizar o treino de força antes do treino aeróbio parece ser mais benéfico;

Se o principal objetivo dos treinamentos é a performance aeróbia:

  • A força máxima deve aparecer como o principal tipo de estímulo. Entretanto, o treinamento pliométrico/explosivo e o foco em contrações excêntricas podem ser vantajosos se implementados adequadamente no plano de treinamento;
  • O treinamento concorrente parece ser particularmente vantajoso depois de mais de 24 sessões de treinamento de força;
  • Realizar primeiramente a sessão de treinamento aeróbio e depois a sessão de treinamento de força parece ser mais beneficial.

Portanto, se o efeito de interferência existe e os atletas precisam realizar o CT, é importante que o praticante entenda as consequências da manipulação aguda das variáveis de treinamento como frequência, sequência, intensidade e o tipo de exercício. Essas, são variáveis que podem desempenhar um papel fundamental nesse fenômeno de interferência.

Referências

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